A Câmara dos Deputados aprovou nesta semana o texto base do projeto de lei nº 7.663/10, do deputado Osmar Terra (PMDB-RS). Representa um dos maiores retrocessos legislativos dos últimos tempos quanto ao impacto da lei de drogas no sistema prisional e na Justiça criminal.
Como se não fosse evidente o fracasso da atual política de encarceramento em massa, em muito resultante da atual legislação antidrogas, as propostas em questão reforçam e aprofundam a ótica punitiva e seletiva do Estado sobre o tema.
A população carcerária brasileira já é a quarta maior do mundo (550 mil). Temos também a terceira maior taxa de encarceramento. Desde 2005, um ano antes da promulgação da atual Lei de Drogas, a população prisional por tráfico saltou de 33 mil (11% do total) para 138 mil (25% do total).
Pesquisas recentes demonstram que a maior parte das pessoas presas por crimes relacionados a drogas são homens, jovens entre 18 e 29 anos, negros e pardos, com escolaridade até o primeiro grau completo e sem antecedentes criminais.
O que se vê é que o suposto combate às drogas é na verdade um instrumento eficaz de criminalização da pobreza e da juventude negra.
Além disso, esse jovem é em geral preso sozinho, sem arma, com pouca quantidade de droga e sem que tenha havido qualquer atividade de inteligência policial para a sua prisão (são presos, via de regra, nas "rondas" das Polícias Militares).
Não há, portanto, verdadeira articulação estratégica no combate ao tráfico e suas redes, mas tão somente a prisão de usuários como traficantes ou de pequenos traficantes, facilmente substituídos na estrutura do crime quando presos.
Diante desse quadro, soam irreais as propostas em questão que estabelecem novos aumentos de pena e um suposto critério de distinção entre usuário e traficante, absolutamente subjetivo, e que, portanto, perpetua a lógica seletiva da Justiça criminal. A previsão de penas proporcionais ao "grau de dependência" do entorpecente, além de tecnicamente discutível, acaba punindo ainda mais os já marginalizados usuários de crack.
O texto insiste na fracassada concepção de internações como política prioritária para lidar com usuários ou dependentes químicos. Vai em desacordo com a Lei da Reforma Psiquiátrica, que prevê internações somente quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Da ONU ao Ministério da Saúde, da Organização Mundial da Saúde ao Conselho Federal de Psicologia, todos recomendam exatamente o oposto.
A cereja do bolo é a previsão de ampliação maciça do atendimento aos usuários/dependentes pela rede privada onde não houver equipamentos públicos adequados --lucro fácil no Brasil-- e comunidades terapêuticas religiosas. Previsão de difícil digestão para os que prezam por um Estado laico e garantidor das liberdades individuais.
Como se vê, não é à toa que o projeto de lei e seu substitutivo têm gerado um caminhão de críticas em diversos setores da sociedade, aparentemente ignoradas pelos nossos representantes.
De qualquer modo, ainda dá tempo para que o debate seja ampliado, também sob a ótica daqueles que vêm sendo historicamente o alvo preferencial da política nacional antidrogas: os jovens, negros e pobres.
Se o direito penal é o direito dos pobres, porque sobre eles, exclusivamente, recai sua força (Heleno Fragoso), vê-se que os nossos deputados almejam prestar relevantes serviços ao fortalecimento desse "privilégio". Com a palavra, o Senado Federal.
RAFAEL CUSTÓDIO, 31, advogado, é coordenador do Programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos eRAFAEL DIAS, 31, é doutorando em psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da ONG Justiça Global
FOLHA DE SÃO PAULO
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